Buscar no site

Um encontro indesejado

COLUNISTA - Niva Miguel

Niva Miguel

  • 21/03/18
  • 10:00
  • Atualizado há 314 semanas

O menino franzino meio negro, meio branco, meio amarelo e meio nada, com seus 17 anos de idade, aparentava ter 13,14 anos, no máximo. Ele já nasceu morto, mas está vivo. Isso quer dizer, que ele é um morto vivo desde que por esse mundo apareceu.

Seu maior feito foi ter conseguido nascer. O menino não teve pré-natal, não teve pai, não teve um lar, não teve carinho, amor, dengos e mimos, não teve Educação, não teve nada. Por isso, a palavra que ele mais ouviu em toda a sua vida foi "Não". Na banda ou "quebrada" onde ele mora é conhecido como Paulinho do Cururu, ou PC. Isso é o máximo para ele!

O oposto disso é John Vasconcellos, 37 anos, loiro, 1,90m de altura, olhos azuis, porte atlético, um ar de superioridade sempre presente em seu semblante e, claro, bem-sucedido. Um gato! John sempre teve tudo na vida do bom e do melhor mesmo antes de nascer. Cresceu com tudo que poderia ter. Um lar estruturado, papai e mamãe presentes, numas, né, mimos pra todos os lados e, principalmente, Educação de primeira. Tudo normal para um membro da classe média alta ou remediada, sabe-se lá.

Com o capital econômico e cultural herdado da família, que lhe caiu no colo sem esforço nenhum da sua parte, John aproveitou e usou o que no seu meio é chamado de meritocracia. Daí, sem muito trabalho conseguiu se formar em medicina, em uma faculdade particular, e colocar um Dr. na frente do seu nome. No seu consultório pendurados nas paredes, o diploma e vários certificados de cursos no exterior decoram o ambiente. E, com isso, seu consultório está sempre cheio. Mesmo que a consulta seja cobrada a peso de ouro.

Contudo, é de se esperar que o local onde os dois personagens moram seja naturalmente bem diferente, muito distinto, aliás. PC habita a "Favela do Cururu", nome dado pela enorme quantidade desse anfíbio (sapo) presente no lugar. Local com esgoto a céu aberto, sem arborização, sem asfalto, sem água encanada, barracos feitos de madeiras e cobertos com telhas de zinco e a presença da polícia quase que diariamente, entre outros horrores. O inferno!

Já John, agora Dr. Vasconcellos, reside em um bairro considerado nobre com ruas arborizadas, asfalto, água, luz e tudo funcionando perfeitamente como manda o figurino. Além disso, há guardas particulares armados nas guaritas de algumas residências para garantir a segurança. A imagem que se tem é que lá a vida é perfeita.

Coisa para espíritos superiores. Um paraíso! Mas, todos ali esquecem que bolsos cheios, muros altos e guardas não podem protegê-los para sempre.

Um pouco de história

PC nunca soube o que é a felicidade. Na sua vida parece que nada dá certo. Nos primeiros anos de escola, frequentava as aulas só por causa da merenda para poder comer alguma coisa. E, o máximo que ele aprendeu, foi desenhar o seu nome. No seu barraco de dois cômodos, era um Deus nos acuda, literalmente. Presente de Natal, do Dia da Criança, Ovo de Páscoa, bicicleta, bola de futebol...esses regalos, a mãe e nem ninguém nunca lhe deram. Também, por mais que procurasse nunca conseguiu arrumar um trabalho, não tinha nem documentos. Enfim, PC fazia jus ao ser classificado como um morto vivo.

Diante das adversidades que a vida impõe, ele nunca teve ajuda para enfrentá-las e, sozinho, não dava conta. Com isso, nessa sua caminhada, seu coração foi se enchendo de rancor e de ódio pela vida. Ele sentia que não iria muito longe e, principalmente, pelas pessoas que o viam como um nada.

Em algum momento de lucidez, ele até se dirigia mentalmente a Deus e pensava: "Senhor, por que me fizeste assim, tão pobre e tão miserável? Por que nunca tive um carinho de pai e mãe? Por que passo fome, enquanto outros jogam comida fora? Por que sou tratado como um cachorro sardento e ninguém quer chegar perto de mim? Por que sou marginalizado e humilhado a todo instante, além de condenado eternamente? Mesmo quando estou na sua casa, Senhor, as pessoas ao redor me olham com desdém, com desprezo. Pior, com medo. Por que, Senhor?".

Esses pensamentos ele não dizia para ninguém, ruminava isso a maior parte do tempo. À medida que essas ideias surgiam em sua mente, sua perspectiva e sua esperança para alguma melhora, acabavam cedendo lugar para a fúria e para a ira que não paravam de crescer. E esses sentimentos o levarão por caminhos que ninguém deve seguir.

Por outro lado, o Dr. Vasconcellos com 10 anos de idade, já havia visitado a Disneylândia duas vezes. Com 15 anos, também já havia conhecido várias capitais europeias. Seus primeiros estudos foram em escola particular famosa, a melhor que o dinheiro pode pagar. Para chegar até lá não precisa nem caminhar, havia um motorista para levá-lo e buscá-lo. Aos 18 anos ganhou seu primeiro carro, mas não era um automóvel qualquer. Era um importado. Entretanto, a máquina permanecia no nome do pai e, caso houvesse alguma desobediência, o automóvel voltaria para o seu legítimo dono.

Pois bem, a mocidade do Dr. Vasconcellos foi igual a de todos da sua idade e do seu meio, é claro. Na faculdade teve algum destaque, mas não pelo conhecimento acadêmico. Era disputado pelas meninas por ser bonito, além de um bom partido para casar. Frequentava clubes, bares e restaurantes, enfim, a high society. Tinha um estilo de vida fabuloso, de dar inveja a qualquer simples mortal. Quando se formou e estava apto a exercer a profissão, já havia um consultório montado pelo pai lhe esperando.

Então, foi só abrir as portas e esperar pelos pacientes.

Essa facilidade em adquirir as coisas, a pouca dedicação nos estudos, o diploma e os certificados eram mais para o currículo do que para o conhecimento, e o dinheiro fácil o fez enxergar um mundo distorcido, onde seus valores eram guiados pelo orgulho e pelo ego. Isto é, o Dr. Vasconcellos é o retrato fiel de que a inteligência não é conquistada por frequentar por vários anos uma universidade e cursos complementares.

Vindo com o vento

A vizinhança toda estranhou quando viu PC rindo à toa, e dizendo que agora ele era outra pessoa. Todos se perguntavam o que havia acontecido para tal procedimento.

Simples, ele estava apaixonado! Há alguns dias num baile Funk conhecera Veridiana da Silva, 16 anos de idade, negra, sorriso fácil, dançarina e com tudo em cima. Também era considerada como uma das mais bonitas e desejadas da quebrada.

Perto do seu aniversário ela pediu a ele de presente um passeio no Shopping e, se possível, queria ganhar uma blusinha. Assim, ficou combinado que daqui a três dias eles iriam fazer esse passeio.

Acontece que PC tinha um problema, ele não tinha dinheiro. Além disso, ele também precisa comprar roupas novas para impressionar a garota. Isso mexeu com o já conturbado psicológico do rapaz. E a única vez em que o amor brotou em seu coração durou pouco tempo. Pois, diante da situação, novamente a ira e o rancor retornaram ao seu lugar de costume. Só que, dessa vez, mais forte ainda. Ele não sabia como resolver esse problema.

O contrário disso era o Dr. Vasconcellos, aparentemente sem problema nenhum a não ser administrar sua longa agenda. O consultório ia de vento em popa com consultas agendadas para três meses, uma maravilha. Mesmo assim, sobrava um tempinho para jantares de negócios e encontros amorosos. Viagens curtas também eram possíveis, às vezes. Reunião semanal na Loja Maçônica, e o que ele não dispensava de jeito nenhum: exercícios na academia pelo menos uma vez por semana. Uma vida assim, não havia do que reclamar!

Nesse dia, PC acordou perto do meio dia e mal-humorado. Olhou para os lados e não viu ninguém dentro do barraco, também não sabia se sua mãe e irmãos haviam dormido por ali aquela noite. Comeu um pedaço de pão seco com chafé, lavou o rosto em um balde, colocou uma bermuda toda amarrotada, camiseta, tênis, um gorro tipo Ninja e pegou, embaixo do colchonete, seu instrumento de trabalho: um revólver Taurus calibre 38 carregado. Colocou na cintura e saiu. Foi à procura de Veridiana, e a encontrou.

Ela toda sorridente o abraçou, o beijou e confirmou o encontro para o dia seguinte. Dia do seu aniversário. PC fingiu estar feliz e conseguiu disfarçar a sua enorme preocupação, mas acabou ratificando o passeio. Afinal, era uma questão de honra.

O Dr. Vasconcellos acordou no mesmo dia no horário de sempre, fez a barba, tomou um banho demorado, passou cremes e perfumes, colocou sua roupa de trabalho toda branca e deixou a sua suíte rumo à mesa para fazer o seu desjejum, já preparado pela empregada.

Depois disso, se despediu de todos, entrou no seu carro, colocou sua mochila com o material de ginástica no banco de trás e partiu. Ligou o rádio naquela emissora que "troca" a notícia, para se (des)informar dos acontecimentos e, assim, ele chegou ao consultório.

Terminado o expediente, lá pelas seis da tarde, ele foi para a academia malhar. Malhou, conversou um pouco e até tomou uma cerveja sem álcool. Perto das oito, se preparou para deixar o ambiente, se despediu dos amigos e se dirigiu para pegar o seu carro que estava estacionado na rua.

Enquanto isso, PC que havia perambulado a tarde toda remoendo a mesma ideia, precisa arrumar dinheiro, estava na espeita atrás de uma árvore observando tudo que acontecia ao redor.

Dr. Vasconcellos chegou até o seu carro e abriu a porta, nisso tocou o seu celular, ele atendeu e ficou em pé na calçada conversando. Era um paciente. Junto com o perigo vem a vulnerabilidade e isso atrai o oposto.

A conversa já durava cerca de 3 ou 4 minutos, naquela situação, uma eternidade. PC sentiu que o vento estava a seu favor e agiu. De arma em punho se aproximou e anunciou o assalto. O Dr. Vasconcellos, pego de surpresa, não sabia como se comportar e ficou estático, tremendo. PC pediu o celular e a carteira, que lhes foram entregues de imediato.

Nesse momento deve ter passado pela cabeça de PC o seguinte: Eu não tenho nada a perder, ele está com essa roupa bonita, esse carro importado, celular e, se ele entregou tão rápido assim, ele pode comprar tudo de novo amanhã mesmo. E isso lhe causou ainda mais raiva e inveja!

Já na cabeça do Dr. Vasconcellos o pensamento poderia ter sido: com tudo que eu tenho de nada adianta agora, queria ter comprado a chave para me livrar desse momento, e que colo de mãe não é a solução para tudo.

Mas, esses encontros indesejados, dinheiro nenhum pode adiar! É o destino! O fato é que ninguém sabe o que aconteceu, testemunhas afirmam que ouviram dois tiros. E, quando chegaram ao local, viram os corpos lado a lado já sem vida estendidos no chão. PC segurava o celular e uma carteira e, no meio dos dois, o revólver. O que era para ser um assalto se transformou em um crime horrível.

PC, que sempre andou no fio da navalha, estava certo quanto a não ter uma vida longa. A única oportunidade que teve, talvez, o amor de Veridiana, o levou à morte pela escolha errada que fez. Foi enterrado em uma cova rasa como indigente.

O Dr. Vasconcellos foi velado com todas as honras e tudo aquilo que a gente já sabe que acontece num caso como esse e, depois, enterrado no mausoléu da família. Nos dois cemitérios onde foram enterrados, pode-se ler em cima do portão de entrada, em latim: "Aqui somos todos iguais". E a vida continua!

Niva Miguel é jornalista e professor, membro do Instituto Zimbauê, autor do livro "Além da Notícia".

[email protected]

Receba nossas notícias em primeira mão!

Veja também
Colunistas Blog Podcast
Ver todos os artigos