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Pássaro ouvindo Bach

COLUNISTA - Por José Benjamim de Lima

José Benjamim

  • 30/08/18
  • 19:00
  • Atualizado há 290 semanas

Por José Benjamim de Lima

Acho que ninguém vai acreditar, mas aqui vai esta crônica surreal que, não obstante rigorosamente verdadeira, tenho certeza não será capaz de abalar os alicerces cartesianos daqueles que prezam excessivamente a racionalidade. Mas certamente falará ao coração daqueles que são incrédulos para valer, isto é, não acreditam que o mundo seja apenas aquilo que sua inteligência pensa que vê e compreende.

Tenho um bom convívio com pássaros. Certa vez, a caminho do trabalho, um desses pequeninos se emparelhou com o meu carro e percebi que parecia divertir-se, acompanhando-o. Aumentei um pouco a velocidade e ele, aceitando o desafio, aumentou também a de seu voo. Por um bom tempo seguimos emparelhados, como se estivéssemos tirando "racha", até que ele, talvez cansado da brincadeira, levantou garbosamente o pescocinho, inclinou o corpo, e mudou de direção.



Recentemente, tive um amiguinho insólito, um passarinho - pasmem! - que gostava de ouvir Bach. Era um pequeno sabiá laranjeira, que apelidei de Cravinho, por óbvia razão. Frequentador assíduo de meu gramado, peito amarelinho, aterrissava alegrinho e saltitava, catando insetos aqui e acolá. Uma belezinha! Sempre que tentava aproximar-me, voava para longe, assustado.

Certo dia, pus-me a ouvir uma das peças do Cravo Bem Temperado de Johann Sebastian Bach e percebi que o pequeno pássaro ficou um bom tempo imóvel, como se prestasse atenção à música. Esticava o pescocinho na direção do meu escritório e balançava a cabeça, como que aprovando o que ouvia. Logo depois, para surpresa minha, alçou voo rumo... ao interior do escritório, pousando no sofá, atento às evoluções sonoras. Fiz menção de aproximar-me um pouco mais; ele, entretanto, levantou voo, fugindo.

Dias depois, a pequena ave retornou. Pousou, à beira da piscina, onde bebeu água, molhando um pouquinho as penas. Em seguida, abriu as asas, agitou vigorosamente o corpinho, como se quisesse enxugar-se, e pôs-se a andar pelo gramado, procurando insetos e sementes. Para tirar a prova de meu ceticismo, que se recusava acreditar que a cena de dias antes não fora mero acaso, pus o Cravo Bem Temperado no aparelho de som. Ao ouvir os acordes bachianos, Cravinho parou imediatamente de procurar insetos, levantou o pescocinho e quedou-se imóvel, aparentemente ouvindo a música. Logo em seguida, voou para o escritório e pousou no braço do sofá. Dessa vez, não cometi a imprudência de tentar aproximar-me. Quedei-me imóvel, observando as reações da pequena ave, enquanto a música rodava. Cravinho ficou o tempo todo atento aos sons, ora voando de um para outro braço da poltrona, ora saltitando pelo assento. Quando o aparelho silenciou, deu um pequeno trinado e foi-se embora. Parecia feliz.

Essa cena se repetiu muitas vezes. Sempre que Cravinho aparecia, punha o Cravo Bem Temperado no aparelho, meu amiguinho entrava e pousava na poltrona, ouvindo. Com o tempo, foi aceitando que me aproximasse aos poucos, até não estranhar que eu me sentasse perto dele, no sofá, deliciando-me, tal como ele, com os maravilhosos acordes bachianos. Faz meses que não aparece; talvez tenha sido vítima de algum gato malvado, ou de alguma gaiola humana. Sobrou a saudade. ([email protected])

Ilustração de Marilaine Pontes

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