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O texto precisa de descanso

COLUNISTA - Kallil Dib

Kallil Dib

  • 17/09/19
  • 18:00
  • Atualizado há 236 semanas

Diria minha professora de redação da faculdade de Ciências e Letras de Assis - Unesp: que "0o

texto precisa descansar". De um dia para o outro, se necessário. Amanhã, quando o autor ler

novamente sua obra, da primeira até a última linha, vai mudar tantas vírgulas, colocar um

verbo a mais, trocar o seu título. O texto de ontem já não é mais o mesmo.

Mas não são todas as obras que têm o privilégio de colocar as aspas para cima e deitar-se na

rede, antes de perdurar pela eternidade. O próprio Machado de Assis, o maior desse legado,

publicava seus textos sem qualquer sombra e água fresca. Lá no Diário do Rio de Janeiro, seu

primeiro jornal, reclamava (vejam só) de ter que se adequar ao tempo de fechamento da

edição, e não podia, pobre autor, descansar suas linhas.

Mas Machado era Machado. Afinal, mesmo sem qualquer trégua a seus pensamentos, produziu as melhores obras que já vi. Fico eu então imaginando como seriam suas crônicas e artigos, publicados diariamente no periódico, se tivessem tido um dia ou outro de folga.

Então, convenci-me a descansar meus textos. Mas me assusto ao vê-los um dia depois. Tiro daqui. Acrescento dali. E, se tivesse um espelho para essas escrituras, elas não se reconheceriam.

Este texto que você lê, deixei-o na gaveta. Ficou lá por algum tempo. Este próprio trecho aqui,

acabei de acrescentar. Permiti a esta crônica talvez um tom mais agradável. Não gosto muito da parte de teorias. Prefiro a poesia das coisas: as cores dos ponteiros do relógio da parede, as letras desgastadas deste teclado, a poltrona carcomida pelo tempo, que me sento para

escrever.

Verdadeiramente, meus textos precisam de descanso. Senão eles ultrapassariam uma lauda, ficariam enormes, sem qualquer chance de um jovem de hoje em dia apreciá-lo.

Em tempo: o primeiro parágrafo escrevi de lembranças que tive da sala de aula. O segundo,

após ler trechos de "Memorial de Aires", o último livro de Machado de Assis, de 1908 - ano em que ele se foi, e descansou.

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