Buscar no site

Palavras e ações

COLUNISTA - José Benjamim de Lima

José Benjamim

  • 02/03/19
  • 18:00
  • Atualizado há 263 semanas

Um dos ideais da educação grega na antiguidade era a formação do homem para a cidadania,

entendendo-se por isso especialmente a efetiva participação no governo da cidade. Preparar o

cidadão para "proferir palavras e realizar ações", conforme está dito na Ilíada, era a grande

meta. O domínio da palavra, compreendendo tanto a capacidade de argumentação e convencimento (o envolvimento pela razão), quanto a retórica (o envolvimento pela emoção),

pouco efeito teria se não se fizesse acompanhar da capacidade de transformar as palavras em

ações.



Daí, o duplo ideal contido na Paideia grega, buscando uma educação que associasse o pensar e

o fazer, não concebendo aquele sem este. Bem mais próximo de nós, o grande sermonista

Padre Vieira, dizia, com a verve que o caracteriza, "palavras sem ações são tiros sem bala;

ecoam, mas não ferem".

As palavras, por si só, já têm alguma dimensão no mundo do agir. O filósofo Merleau-Ponty

lembra que "se [....> toda ação é simbólica, então os livros são, à sua maneira, ações". Mas o

efeito de ação das palavras, consideradas intrinsecamente, é bastante limitado na grande

maioria das situações.

Ainda hoje os ideais da educação grega continuam válidos, observando-se, apenas, que no

mundo moderno, palavras e ações têm uma tendência lastimável para viverem cada vez mais

dissociadas: o que se fala geralmente não se faz e do que se faz nem sempre se fala, por se

tratar de coisa inconfessável.

Esse desacordo quase rotineiro entre palavras e ações talvez seja uma das mais graves

patologias da vida moderna, principalmente no mundo da política (basta ter em mente os

discursos político-eleitorais e as ações concretas de governo passadas as eleições).

Desonestidade e falsidade não são novidade no mundo político. A novidade, própria dos

tempos atuais, segundo Matthew D'Ancona, jornalista britânico, "é a resposta do público em

relação a isso. A indignação dá lugar à indiferença e, finalmente, à conivência. A mentira é

considerada a regra, e não a exceção" ("Pós-Verdade - A Nova Guerra contra os Fatos em

Tempos de Fake News).

Não é somente no discurso político que palavras e ações estão quase sempre em desacordo.

Na publicidade comercial também se constata essa dissonância; aliás, ela vive desse

desalinhamento, desse descompasso permanente entre o ilusório e o real, entre a promessa

que faz e o que efetivamente nos dá. Mas a publicidade comercial tem menos potencial

danoso. É quase uma convenção de autoengano expresso. Aqui funciona mais, de parte a

parte, um certo cinismo simpático, consciente ou subliminar. O autoengano consentido e

explícito do me engana que eu gosto, é a contrapartida da criatividade cínica de quem

explicitamente só quer vender.

No discurso político, a dissonância entre palavras e ações é bem mais grave, pois abala toda a

coletividade, especialmente nos seus valores essenciais, verdade, integridade, honestidade. É

uma perda civilizatória considerável. Urge que todos tenhamos em mente a advertência de

George Steiner, no livro "Linguagem e Silêncio": "A menos que consigamos restaurar alguma

medida de claridade e rigor no sentido das palavras, na mídia, nas leis e na ação política, as

nossas vidas estarão cada vez mais perto do caos. Virá então uma nova era de obscuridade."

COLUNISTA - José Benjamim de Lima - [email protected]

Receba nossas notícias em primeira mão!

Veja também
Colunistas Blog Podcast
Ver todos os artigos