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Amal e os poderes do mundo

José Benjamim de Lima

José Benjamim

  • 27/05/20
  • 18:00
  • Atualizado há 198 semanas

Sob meus olhos, a foto da menina Amal Hussain, tirada poucos dias antes de sua morte por inanição, dia 26 de novembro de 2018, com sete anos de idade, num campo de refugiados do Iêmen, país pobre que vive há vários anos uma guerra civil. Guerra que nem mesmo é totalmente sua, pois que insuflada pelos vizinhos mais poderosos Arábia Saudita e Irã, que ali medem suas forças, na disputa geopolítica regional, usando a população iemenita como bucha de canhão.

"Vejam. Não há carne, apenas ossos", disse a médica aos jornalistas do The New York Times que tiraram a foto. "Amal vivia sorrindo", disse a mãe, o coração despedaçado.

Foto: Tyler Hicks/The New York Times



A foto da pequena Amal é o testemunho vivo da presença do mal no mundo. Aquele mesmo mal que, como uma sombra, ronda a humanidade desde que os humanos existem. A sombra de Caim recaindo sobre toda morte inocente. Diante da morte da garota Amal e suas circunstâncias, só podemos dizer: isso não podia ter acontecido, não podia, não é humano, não é inevitável. É uma escolha. Não uma escolha de Amal. É uma escolha dos senhores do mundo.

Diante do sofrimento e morte de Amal e de tantas milhares de outras crianças, nas mesmas condições, só nos cabe dizer: não, o mal não é um destino, o mal é uma escolha. A escolha de Caim. Mas Deus não interpela mais os humanos, cobrando-lhes suas maldades. Nem lhes impõe a marca infamante. Senhores do mundo, o que fizestes de vossa pequena irmã Amal? Não, Deus silenciou há muito tempo. E o silêncio de Deus pesa sobre nós, acentua nossa impotência de estar no mundo e de impedir que a inocência seja abatida no altar de sacrifícios dos donos do mundo.

Mais alto que o silêncio de Deus falam os estampidos dos senhores da terra, disputando o butim, o ouro branco, negro, verde, azul, dourado ou qualquer cor que seja, gerando a miséria, a fome, o desespero e a morte de milhares de inocentes, bodes expiatórios de um mundo sem compaixão, o mundo comandado por tão poucos: alguns governantes, algumas grandes empresas, algumas grandes fortunas, e sua imensa ganância, seu desmesurado amor ao poder, que manipula o tempo todo a ignorância, a ingenuidade, a boa fé.

No rosto magro, ossudo, cadavérico, da pequena Amal a barbárie deixou a sua marca. Nos seus olhos, ainda vivos, mas aturdidos, confusos, indefesos, a perplexidade de quem não entende o porquê de tanto sofrimento, tanta privação, tanta provação.

O que fazer, diante da tragédia da pequena Amal e tantas outras crianças sacrificadas? Pegar em armas? Revoltar-se? Quantas revoltas não acabaram em novas formas de opressão e morte, em nome das boas intenções. As grandes narrativas salvacionistas, os tantos "ismos" que têm dominado a história humana, nada mais fizeram que vender-nos ilusões. Só nos sobra a revolta moral. É pouco, é muito pouco, mas é o que temos. Quem sabe, algum dia, nossos atos individuais concretos, rejeitando qualquer cumplicidade com o mal, se alastrem como uma pandemia boa e contagiosa de verdadeira humanidade. ([email protected])

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