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Manhãs Maritacas

COLUNISTA - José Benjamim de Lima

José Benjamim

  • 20/03/19
  • 18:00
  • Atualizado há 260 semanas

A alegria eleva a mente e, de modo correspondente, o corpo. Adam Potkay, "A História da Alegria"

Todos os dias, desde a primavera e agora no verão, acordo com o vaivém das maritacas que

cruzam os ares ruidosamente, pousando, sem nenhuma discrição, nas copas das árvores de

meu quintal e adjacências, onde ficam algum tempo altaneiramente empoleiradas,

"conversando".



Não se sabe o que "conversam", mas são diálogos estridentes, nos quais parecem estar

comentando, radiantes, a beleza da manhã, o sol, a luz, o verde e o vento. Ou, então, quem

sabe, rindo zombeteiramente desses desengonçados seres sem asas que as observam,

conhecidos como espécie humana. A "conversa" geralmente é breve, pois logo em seguida

partem em revoada, sempre barulhentas, rumo a outra árvore próxima, onde retomam o

papaguear, como quem faz questão de proclamar alacremente a alegria de viver.

As maritacas se reproduzem entre os meses de agosto e janeiro, fase de namoro e

acasalamento. Talvez por isso toda a exuberância de sua tagarelice. É o amooor... São muitas

as designações para essas aves conversadeiras. Maritaca, maitaca, maitá, baitaca, variantes da

origem tupi-guarani de seu nome, "-mba'é'taka", que significa "coisa ruidosa, barulhenta".

Nada mais apropriado para designá-las, com a ressalva de que os barulhos que fazem, ao

menos para mim, soam como claras manifestações de alegria.

John Locke, no "Ensaio Sobre o Entendimento Humano" definiu a alegria como sendo "um

deleite da Mente, diante da consideração de um Bem presente ou que certamente se

avizinha". Muitos dirão que isso não se aplica às maritacas, seres desprovidos de qualquer

noção do que seja presente ou futuro próximo, muito menos de capacidade mental para sentir

qualquer deleite. Será mesmo assim?

As manhãs maritacas que me acordam são tão alegremente expressivas (quase estava dizendo

explosivas), que tendem a me convencer de que o sentimento de alegria não é algo que

acometa apenas os seres humanos; aves e animais também devem tê-lo em alguma

proporção. Pesquisas recentes, de etólogos e neurocientistas, vêm confirmando que não é

mera projeção antropomórfica pensar que muitos seres vivos não humanos demonstram ter

atividade cerebral, emoções e sentimentos, ainda que em grau menos sofisticado que o da

consciência humana. "As evidências de hoje indicam que muitos animais sentem alegria,

tristeza, pena..." - afirma o biólogo Marc Bekoff, da Universidade do Colorado.

Tenha ou não confirmação científica, o fato é que as ruidosas maritacas me passam um grande

sentimento de alegria. Segundo o filósofo Spinosa, grande pensador dos afetos, na sua "Ética",

"a alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor a uma maior". As contagiantes

maritacas têm exatamente esse dom: o de me trazerem à porta de casa a alegria e, com ela, o

sentimento de que "Não faz muito sentido / Não esperar o melhor", como canta o conjunto

Madredeus, na bela voz de Teresa Salgueiro. É às vezes difícil para os humanos dar-se conta de

que a alegria, como disse Oswald de Andrade no seu Manifesto Antropófago, é a prova dos

nove. E eu acrescentaria: é a prova dos nove da vida. Deve ser buscada a cada dia, a cada hora.

Louvemos as ruidosas maritacas, que sabem que a alegria é a prova dos nove da vida e nos

ajudam a encontrá-la.

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